Beatificação e canonização: semelhanças e diferenças

O que é canonização?
l. Definição
A canonização é o ato solene pelo qual o Soberano Pontífice, julgando em última instância e, emitindo uma sentença definitiva, inscreve no catálogo dos santos um servidor de Deus, anteriormente beatificado. Por esse ato, o papa declara que aquele que ele acaba de elevar sobre os altares reina verdadeiramente na glória eterna, e ele ordena à Igreja universal lhe prestar, em todo lugar, o culto devido aos santos[8].
O autor da canonização é o chefe de toda a Igreja. Porque se trata da salvação eterna e, logo, do bem comum de toda a sociedade, somente a autoridade legítima tem o poder de promulgar a lei nesse domínio. A canonização equivale, então a um triplo julgamento soberano e definitivo pelo qual a Igreja afirma com autoridade:
a) Que tal pessoa está na glória eterna e , durante sua vida, praticou as virtudes sobrenaturais num grau heróico;
b) Que essa prática constitui para todos os fiéis da Igreja uma norma tão segura que nela se conformando, estão assegurados de participar da salvação eterna;
c) Que todo fiel deve dar sua adesão a esses dois julgamentos a) e b) e professar sua adesão tomando parte ao culto público que a Igreja vai, de hoje em diante, render ao santo canonizado para reconhecer oficialmente a heroicidade de sua virtude.
O santo é dado como exemplo por suas virtudes. Pelo culto que lhe é dado é a graça eminente que nós veneramos – através de sua pessoa – participação íntima na natureza de Deus.
2. Canonização e beatificação
a) Semelhanças: nos dois casos, o fim, o objeto e o autor são idênticos; e do ponto de vista da essência da lei, nos dois casos estamos diante de um julgamento que anuncia as virtudes heróicas de um santo ou de um bem-aventurado.
b) Diferenças: a beatificação não é um julgamento definitivo, mas sim um ato reformável que prepara a sentença de canonização, enquanto que esta última é uma sentença irreformável.
A beatificação não é um preceito, mas uma permissão, enquanto que a canonização é um preceito e constitui, então, uma obrigação.
A beatificação não é uma lei que obrigue a Igreja universal, mas um privilégio concedido a uma parte da Igreja universal (província eclesiástica, diocese, cidade, família religiosa), enquanto que a canonização é uma lei cuja observação é prescrita à Igreja universal.
3. Infalibilidade
a) A beatificação não é um ato infalível
Em se tratando das beatificações realizadas pelos bispos antes de 1170, está fora de dúvida que elas não poderiam se beneficiar da infalibilidade, pois, de direito, são atos que emanam de um sujeito que não pode jamais ser infalível a título pessoal. De fato, a história mostra que erros foram cometidos[9].
Em se tratando das beatificações que, depois de 1170, ficaram como privilégio exclusivo da Sé apostólica, é verossímil que não são também atos infalíveis: esses atos, com efeito, não são definitivos, nem preceptivos; ora a infalibilidade só pode estar relacionada a um ato definitivo e preceptivo[10]. Um privilégio se aplica, por definição, a uma matéria não necessária. Poderia-se distinguir entre as beatificações equipolentes e as beatificações formais, dizendo que as segundas oferecem mais garantias que as primeiras e que, por conseqüência, a recusa de lhe conceder o assentimento que lhe é devido constituiria uma falta mais grave,[11] sem para tanto atribuir a infalibilidade à beatificação. É preciso igualmente considerar o argumento da universalidade: a beatificação não introduz o culto ao bem-aventurado na Igreja universal. Ora, os atos infalíveis do magistério devem se estender à Igreja universal.
b) A canonização
O conjunto – quase unânime – dos teólogos até o concílio Vaticano I ensina que o papa, quando canoniza um santo, exerce a prerrogativa da infalibilidade. Citemos sobretudo: São Tomás[12] , Melchior Cano[13] e Bento XIV[14].
Há, de início, um argumento de direito: não é possível que o papa se engane canonizando um homem que seria reprovável, porque isso significaria ensinar algo contrário à fé e a moral, pois o papa ensinaria assim que poderíamos nos salvar imitando o exemplo de quem foi conduzido por suas más ações à danação.
Há também um argumento de fato que sublinha Bento XIV: nunca se achou um erro nas canonizações as quais os papas puderam proceder[15].
c) Valor dessa infalibilidade
É a opinião comum dos teólogos e a expressão de uma certa tradição na Igreja; mas não é ainda um dogma de fé solenemente definido. Aquele que negasse essa infalibilidade não poderia ser considerado como herético.
d) O caso do martiriológio
A inscrição de um personagem no martiriológio não significa a canonização infalível deste. O martiriológio é a lista que abrange não somente todos os santos canonizados, mas ainda os servidores de Deus que puderam ser beatificados, seja pelo Soberano Pontífice, seja pelos bispos antes de 1170[16]. E essas beatificações não são infalíveis[17]. Os títulos de “sanctus” ou de “beatus” não têm, no martiriológio, a significação precisa que permitiria fazer a separação entre santo canonizado e bem-aventurado.
4. O objeto da canonização
 É de início e antes de tudo é a santidade da pessoa e as virtudes heróicas que fazem par com a santidade. Os fatos miraculosos são secundários e ocasionais para atestar a heroicidade sobrenatural de suas virtudes. O sobrenatural dos milagres e dos fatos extraordinários não é evocado por si mesmo, mas somente para atestar a origem divina das virtudes e manifestar a eminente graça santificante.
Precisemos ainda: de que santidade se trata? Em que ela consiste precisamente?
Ela consiste na graça santificante possuída a um grau extraordinário, um tal grau de caridade divina que é acompanhada de virtudes infusas e adquiridas praticadas até o heroísmo. Esse heroísmo das virtudes é como o termômetro da santidade: lá onde tem santidade verdadeira, tem também virtude heróica, e lá onde as virtudes são praticadas num grau heróico e onde nenhuma virtude faz falta, há santidade. Não sendo a graça apreendida pelos sentidos, o julgamento sobre a santidade se fará a partir da heroicidade das virtudes.
As virtudes infusas sendo conexas entre si – contrariamente aos defeitos – o organismo espiritual do santo comportará então o conjunto das virtudes morais a um grau eminente; a menor falha nas virtudes morais infusas será o sinal de que não há, na pessoa em questão, um grau consumido de graça santificante.
Entretanto, a graça da caridade excede ao infinito a condição natural comum a todos os homens: ela é um dom gratuito que a natureza não saberia reivindicar como o que lhe é próprio. São Tomás adverte, a propósito da obtenção da salvação sobrenatural, que “o bem proporcionado à condição comum da natureza se realiza quase sempre, e só faz falta raramente. Enquanto que o bem que excede o estado comum das coisas se acha realizado somente por um pequeno número, e a ausência desse bem é freqüente[18].
Podemos então tirar, a propósito da santidade e da virtude heróica que ela implica, a mesma conclusão que São Tomás estabelece falando da salvação eterna: “Porque a santidade, que consiste na caridade perfeita, excede o nível comum da natureza, e, além disso, a partir do momento em que essa natureza foi privada da graça pela corrupção do pecado original, existem poucos homens santos. E mesmo nisso aparece soberanamente a misericórdia de Deus, que eleva alguns seres a uma santidade que falta ao maior número, segundo o curso e a inclinação comum da natureza[19].
Há então dois motivos que explicam porque a santidade – e, logo, a canonização que a dá como exemplo – é coisa rara: há, de uma parte a transcendência absoluta da graça em relação à natureza, e há, por outro lado, a corrupção do pecado original. Acrescentamos um terceiro motivo. A santidade que é reconhecida pela canonização toma o valor de um exemplo; ora o que é dado como exemplo deve atrair a atenção e para isso apresentar alguma coisa de singular, de extraordinário no sentido etimológico. A linguagem corrente consagrou, aliás, essa verdade assimilando os dois vocábulos exemplar e único. Por isso a multiplicação dos santos leva a diminuir sua exemplaridade: mesmo se os santos fossem numerosos, um pequeno número dentre eles e não a maior parte deve fazer o objeto de uma canonização.

Conclusão: a santidade, fundamento de toda canonização, é um estado extraordinário de vida sobrenatural extraordinária, nesse sentido que está bem além da via comum.


Fonte:http://www.capela.org.br/Crise/canoniza2.htm